Crescer com saudades da minha mãe
- amargaridablog
- 11 de jul. de 2023
- 6 min de leitura
Estava na escola, no horário de almoço. Tinha o hábito de ir com os meus colegas ao café que ficava em frente, pois preferíamos os snacks do que a comida da cantina.
A minha tia trabalhava nessa escola como auxiliar e recordo-me que o seu horário de trabalho começava cedo. Mas, ao chegar perto do portão, vejo-a chegar mais tarde que o normal. Se não me falha a memória, era meio-dia (ou passava um pouco disso). Olho um pouco mais para a minha direita e vejo também o meu tio.

Bom, como eu saía sempre para comprar lanches fora e não comia na cantina, eu ainda pensei que estavam lá para me dar nas orelhas.
Era terça-feira, dia 16 de Janeiro de 2007. E antes de eu te contar o que de facto aconteceu, deixa-me pôr-te a par do meu contexto naquela altura.
A minha mãe tinha tido uma recaída no dia 14 de Janeiro de 2007, era domingo de manhã. Encontrei-a na casa de banho e estava a perder imenso sangue. A luta contra a Poliomielite já durava há 20 anos.
Foram inúmeras recaídas, alguns anos em cadeira de rodas - depois de muita fisioterapia recuperou o andar -, e algumas transfusões de sangue que quase foram recusadas pelo seu corpo. E tudo isto começou quando ela tinha apenas 18 anos.
A minha mãe já estava no hospital desde esse domingo. A última vez que a vi foi a entrar na ambulância. E mal conseguia ver o seu rosto, devido ao aparato urgente de todos os enfermeiros.
Nunca tinha visto a minha mãe numa fase agravada da doença. Ela tinha marcas visíveis no seu corpo, mas vivia de forma tão alegre e era tão cheia de vida que nunca me recordava que tinha uma doença crónica.
Nessa manhã, eu fiquei confusa porque não sabia o que estava a acontecer. De resto, toda a minha família estava em alvoroço e eu só via lágrimas na cara de todos. Eu não percebia o que estava a acontecer.
Enquanto me aproximava do meu tio, que estava bastante agitado, eu já me estava a preparar para pedir desculpa de estar fora da escola. Mas, antes que eu pudesse dizer o que fosse… ele falou primeiro.
Foi ali, em frente ao portão da escola, que fiquei a saber que a minha mãe tinha falecido. Ela faleceu no dia a seguir a chegar ao hospital, no dia 15 de Janeiro de 2007 à noite.
Uma auxiliar no hospital, que congregava na mesma igreja que nós na altura, foi a última pessoa a estar com ela. E o meu coração enche-se de amor por saber que eu fui tema de conversa - conversa essa que quero guardar para mim.
Eu tinha 12 anos.
Foi, sem sombra de dúvidas, a pior notícia que já recebi na vida. Nunca tinha lidado com a morte de alguém tão próximo. E, mesmo sabendo da doença da minha mãe, sempre imaginei que a teria até ser velhinha.
Ficar sem ela era um dos meus grandes medos. Não gostava de ficar muito tempo longe dela. Eu tinha ansiedade de separação - nome que a minha psicóloga me ensinou a dar ao medo e tremor que sentia ao pensar na possibilidade de ficar sem a minha mãe.
Um dos meus grandes medos acabou por acontecer. Mas, como eu disse, tinha apenas 12 anos. Eu não sabia como lidar com toda a situação.
Entrei em profundo estado de anestesia, tinha os meus momentos de choro, mas lidar com a perda era algo demasiado pesado para mim. Eu tinha a minha mãe e, de repente, deixei de a ter.
Reprimi muito do que sentia. “A vida continua”, foi a frase que mais ouvi das pessoas. E também coisas como: “Agora, tens de ser forte.”
Assim o disseram, assim o fiz. E reprimi tudo o que poderia ser emoção. O que me prejudicou bastante, pois eu não fiz o processo de luto.

Não culpo as pessoas, apenas passaram o que lhes ensinaram e elas aceitaram como certo porque não havia outro pensamento. Apesar de tudo o que ouvi, eu sempre fui acolhida por todos.
Penso que um dos maiores desafios até à idade adulta foi colocar limites nas pessoas, principalmente em mulheres que queriam - ainda que com boas intenções - exercer um papel maternal sobre mim.
O problema desse maternalismo é que acabava por condicionar-me a escolher o que elas achavam correcto para mim. E sempre tudo muito ao contrário da forma como a minha mãe me tinha educado.
Devido a isso e ao facto de não ter embarcado logo no processo de luto, eu oscilava muito entre carência e repulsa. Ou seja, queria muito colo e abraço, mas ao mesmo tempo - por me lembrar que não eram a minha mãe - queria apenas que as pessoas me deixassem em paz.
A adolescência foi muito conturbada. Quando olho para trás, sou grata a Deus pelo facto de que nunca me faltaram bons amigos. Estava tão ferida que, mesmo sendo adolescentes, sempre existiram amigos que conseguiam ver além das minhas dores. Tanto que são pessoas que tenho uma grande amizade até hoje.
Além dos meus amigos, não posso deixar de falar da minha família. Que dentro de todos os seus problemas e a sua forma de lidarem com a partida da minha mãe, sempre garantiram que eu continuaria a minha vida de forma saudável e segura.
Pela minha família e pelos meus amigos eu vejo muito a bondade de Deus. E, ainda que tenha existido a repulsa a certos maternalismos, a verdade é que ao longo da vida eu deparei-me com duas mulheres no meu caminho que serviram como figuras maternas saudáveis.
Tenho em grande conta e um coração muito grato à minha avó e a uma grande amiga que me amparou na fase difícil. Ambas choraram comigo e eu sempre me senti segura com elas.
Hoje em dia, tendo em conta que apenas encarei o processo do luto aos 25 anos, posso dizer que uma das coisas mais libertadoras que fiz foi abrir mão da dor.
Eu despedi-me da minha mãe, mas num modo em que eu estava a abrir mão da dor e não da memória dela - até porque isso eu prezo e honro.
Agora que consigo falar abertamente sobre o assunto, não quer dizer que virei uma parede. E, muito menos, que deixei de chorar ou de sentir saudades. Eu ainda choro e ainda fico a pensar no dia em que, finalmente, vamos voltar a encontrar-nos.

Mas, aprendi que a saudade não é dor. É possível recordar a minha mãe sem sentir um peso profundo no peito, ao ponto de quase faltar o ar. É possível falar dela com lágrimas nos olhos e sorriso nos lábios, sem sentir-me vítima de uma injustiça.
Pelo contrário, por causa da saudade que tenho eu consigo ser mais grata a Deus pela mãe que me deu. Foi pouco o tempo que passei com ela? Sim, mas foram os anos mais intensos da minha vida.
Ela tinha uma capacidade de levar a vida com uma alegria e determinação, que deixava outros boquiabertos. E sou muito honesta, sempre que a imagem da minha mãe vem à minha mente garanto que ela está sempre sorridente.
A saudade faz-me recordar o tanto que ela me ensinou e que na altura eu não tinha capacidade para entender. Que existe mal neste mundo e que ninguém está imune ao sofrimento. Mas que, com e em Cristo, tudo se suporta. E pode-se fazê-lo com a paz que excede o nosso entendimento.
A minha mãe - Isabel era o seu nome - ensinou-me que é possível ser alegre e estar em paz mesmo quando não há explicação ou motivo para tal. Ela sabia de Quem vinha a sua força.
Eu sou muito grata a Deus pela mãe que me deu e por ter dado o Seu Espírito Santo para me consolar em cada lágrima.
E sou grata a Ele por ter dado Jesus que não apenas me salvou de mim mesma como me garantiu que voltaria a reencontrar aqueles que já partiram. Por causa Dele eu vou voltar a vê-la.
E sabes qual é a melhor parte? Da mesma forma como Ele colhe cada uma das minhas lágrimas aqui neste mundo da saudade que trago, também vai limpar todas as lágrimas do meu rosto e garantir-me que mais nenhuma será derramada porque não haverá mais morte.
Essa é uma das minhas esperanças. Por isso hoje, mesmo sem a minha amada mãe por perto, eu vivo com esperança. E Deus tornou isso possível.
Emocionante e inspirador,
Obrigada por isto Ana! ❤️
Sem palavras.
Muito obrigada por compartilhar sua história Ana.