Contra Deus e contra o próximo
- amargaridablog
- 7 de out.
- 5 min de leitura
Não conto nada de novo quando vos digo que o que mais afecta as mulheres neste país é a violência doméstica.
Temos informação, organizações, associações de apoio e ainda prevenção (principalmente nas escolas). Então, por que razão a Igreja parece não se envolver o suficiente no assunto? Não deveria ser a primeira a denunciá-lo?
Permitam-me explicar-vos um pouco da minha urgência em falar sobre o tema, já que agressores podem ser encontrados em qualquer contexto, até dentro de lares cristãos.
Poderia começar por mencionar que a ideia de se esconderem atrás de uma máscara de família ideal, com os valores ideais e ainda com as crenças certas, é o plano perfeito para se esconderem.
Mas não vou entrar por aí, começo pelo que sei e vi.

A minha infância
Desde que me entendo por gente pude perceber que o ambiente da minha casa não era como deveria ser. Não precisei que a violência me fosse explicada porque a vi com os meus próprios olhos desde tenra idade.
Éramos uma família disfuncional, é certo. Nunca conheci o meu pai, morava com a minha mãe (solteira), e os meus avós moravam numa casa mais adiante na mesma propriedade.
O meu avô era um homem muito alto e forte. Destacava-se de muitos homens da Beira Baixa e orgulhava-se de ser filho do seu pai “o Paulino” – homem conhecido por ser violento. Tanto que o ouvi dizer inúmeras vezes que haveria de ser pior que o próprio pai.
Acabou por replicar tudo o que o viu por parte do seu pai e à minha avó não lhe faltaram avisos de que a sua vida seria um autêntico inferno se ela não se afastasse do meu avô enquanto era tempo.
Naquela altura, ambos criados dentro da tradição católica, a minha avó não conseguia perceber porque o meu avô mudara tanto depois do casamento. Afinal de contas, o namoro era bastante tranquilo e não havia qualquer indício de que o filho seria igual.
Mas, estando inseridos num contexto de ditadura numa pequena aldeia de Castelo Branco, não havia muito a fazer se não acatar os maus-tratos.
Com o passar dos anos chegaram os filhos que não se escaparam dos maus-tratos físicos, emocionais e psicológicos. Mais tarde, as netas e é aqui que entro na história. Tanto eu como a minha prima fomos poupadas de agressões, pois o meu avô nunca nos tocou com um dedo, mas não fomos poupadas de assistir a espectáculos de horror.
Lembro-me de estar sempre em estado de alerta e de não entender porque os momentos de tranquilidade não perduravam. Havia sempre um motivo para começar uma discussão que acabaria com choro de duas mulheres estendidas no chão.
Nesta fase, já a minha avó e a minha mãe tinham se convertido ao Senhor, optando por deixar a vertente católica e abraçando a protestante. Não foram poucas as vezes que vi a minha avó orar e a crer na transformação do meu avô.
Assim como não foram poucas as vezes que as vi a irem ao posto da GNR fazer mais uma queixa.

Agora, com tudo isto que vos conto…
O que será que tem a ver com a necessidade da Igreja ser a primeira a denunciar estes casos, a apoiar e a garantir segurança para a vítima e a tomar medidas para que o agressor seja denunciado? Aliás, não deveria ser a primeira a fazer uma prevenção?
Sendo jovem adulta, a pressão dentro do meio cristão para o casamento é grande. Chegando aos exageros de me “publicitarem” a todo o jovem solteiro…, mas onde fica a responsabilidade de se ter cuidado já que não se conhece a fundo o coração e o carácter de alguém? Mas isso é outro assunto, voltemos!
Em situações onde a vida de alguém se encontra em perigo das mais variadas formas, é necessário tratar do assunto como se deve. O agressor pode mudar a sua conduta? Sim.
Nós que acreditamos no poder de Deus, sabemos que isso pode acontecer. Mas, enquanto não acontece, é a vítima cá e o agressor lá! Tudo isto antes que uma desgraça aconteça – sem mencionar que a transformação tão desejada pode não acontecer e é bom ter consciência disso.
Chamo-vos a reflectir um pouco mais… como podemos permitir que estas situações tenham continuidade e despachemos o assunto com frases como “há que orar mais, jejuar mais porque Deus vai operar um milagre!”. E se o milagre que Deus tiver para essa mulher seja um escape definitivo das mãos de quem a tentar destruir como imagem e semelhança de Deus?
No fundo, é disto que se trata! A violência doméstica é, nada mais nada menos, do que a violência contra o próximo; uma tentativa de destruir a imagem e semelhança de Deus que existe naquela pessoa.
Enquanto não olharmos para este assunto como sendo um ataque directo a Deus e ao próximo, não entraremos na posição na que deveríamos de estar: de estender a mão a quem precisa de um socorro urgente.

Mais do que um pecado e mais do que um crime.
Além disso, não apenas falamos de um pecado como de um crime e, como tal, tem a sua consequência: prisão – que, em Portugal, as penas podem ir de 3 a 10 anos (dependendo se estes acontecimentos são na presença de menores).
A meu ver – e há quem possa discordar de mim – a Igreja deveria ser a primeira a denunciar estes casos e agir em favor das mulheres que sofrem por parte dos seus companheiros os mais variados tipos de violência (física, psicológica e emocional, financeira e material, e sexual).
Por vezes, em nome da família de valores e que sirva de exemplo para a sociedade, calamos as vozes daquelas que sofrem entre quatro paredes. Denunciar o marido agressivo seria uma desonra, seria acabar com a instituição que Deus estabeleceu.
Porém, se me permitem… não consigo acreditar que Deus prefira uma mulher destruída ou morta, do que a uma mulher divorciada, mas sã e salva. Não consigo acreditar que Deus queira filhos debaixo de um ambiente hostil e perverso, em vez de crianças longe de um pai que se recusa a ser bom exemplo, mas seguras de que não irão repercutir o que viram e que nem lhes serão causados mais danos.
Afinal de contas, não nos libertou Jesus para sermos verdadeiramente livres? Não há qualquer jugo de escravidão sob o qual devamos ser escravos, muito menos estas mulheres.
E se a dúvida ainda é o facto de Deus ser contra o divórcio, eu pergunto: será que o marido que agride a sua esposa física, verbal, emocional e sexualmente… não a abandonou há muito tempo?Na verdade, não é apenas a mulher que foi abandonada, mas também abandonado foi o temor a Deus.

Por fim…
É uma questão com muitas camadas e vamos apronfundar cada uma, pouco a pouco. O importante é que a mensagem seja perceptível, aceite e promova em todos um senso de agir em favor de quem precisa. Antes que seja tarde demais.
Incrível Deus te abençoe Ana