Livro: Pequenas Coisas como Estas, de Claire Keegan
- amargaridablog

- 24 de nov.
- 4 min de leitura
Como disse a Jéssica Rangel, no episódio do Entrelinhas: “Se eu fosse escritora, eu escreveria livros como a Claire”. E eu, não só apoio a sua frase para que um dia se lance os seus livros, como a uso quando penso na maestria que quero chegar.
Tornou-se uma das minhas leituras favoritas e um dos grandes temas de conversa com a Jess.
Fez-me esquecer a mistura de brutalidade e doçura de Joel Miller (The Last of Us) e focar na serenidade, constância e estabilidade que Bill Furlong transparece - o protagonista.
Talvez possa ser um devaneio meu, mas gosto de classificar escritores pela forma como olham para o homem e para a mulher.
Billy foi uma agradável surpresa. Uma calma e serenidade que é mais forte que qualquer acto heroico conquistado a espada ou arma.
Penso que convicções firmes e saudáveis é que fazem os homens serem bons homens.

Irlanda dos anos 80
Tempo e espaço? Temos!
Uma pequena vila na Irlanda, nos anos 80, em que o cenário era de famílias unidas, mas com salários precários e trabalhos que eram o que se podia arranjar.
Mas há mais detalhes: havia nessa pequena vila um convento local - onde Billy fazia o seu trabalho de entregar a encomenda de carvão (a Irlanda é fria, bem sabemos) - que recebia moças que os pais consideravam não ter um comportamento apropriado.
Nem precisava chegar a tanto. Bastava não respeitarem uma simples ordem, serem “namoradeiras” ou não terem onde cair mortas.
Estes conventos, espalhados por todo o país, foram criados pelos Protestantes no século XVIII onde serviam para receber mulheres em situação vulnerável (prostitutas, vítimas de qualquer tipo de violência e abuso, abandono, etc.).
Funcionam também como lavandarias. O objectivo era dar um novo começo a estas meninas, moças, mulheres. Para terem o seu próprio sustento e uma vida reestruturada.
Mais tarde, passa para a Igreja Católica. Não se encontram informações que expliquem porque mudou a confissão de fé, mas mais tarde começam os casos de abuso.
Estima-se que mais de 30 mil mulheres tenham passado por estes conventos e tenham sido forçadas a trabalhos pesados, sem ver o pagamento do seu trabalho, tendo os seus filhos entregues a estranhos e, outros, mortos e enterrados nos quintais.

O cenário de Billy
É aqui que encontramos o nosso protagonista. Um homem de família. Fiel à sua mulher e um bom pai para as suas cinco filhas.
Um homem pacato, sereno, trabalhador e constante. Não de muitas palavras, mas de muitos pensamentos.
Profundamente marcado pela necessidade de revisitar memórias do passado que demonstram que não ultrapassou a morte da sua mãe quando era ainda um menino. Que a viu estendida no chão no momento em que esta caiu.
Nunca conhecera o pai, fora criado pela sua mãe que trabalhava para uma bondosa senhora protestante que se recusou a mandar embora a sua empregada quando esta engravidou de Billy.
Poderia ter sido uma das mulheres desses conventos… Billy podia não ter sobrevivido ou ter recebido a boa educação que recebeu.
É pacato, sereno, mas carrega um mundo de dor aos ombros. Tem tanto para falar, palavras com tanto peso, que se recusa a fazê-lo. Prefere o silêncio, a rotina. O que tem agora (que não é muito) basta-lhe.

Simples encomendas
Ao fazer o seu trabalho - que se resume a conferir a medida de carvão que tem de entregar, de o colocar na carrinha e conduzi-la até onde é necessário -, dá-se conta da realidade.
Entra num espaço a mais do convento e vê algumas moças a esfregar o chão como se fossem as gatas borralheiras. Cabelos mal cortados, roupas sujas e rasgadas, caras sujas e corpos magros. É chamado à atenção de que não deve ultrapassar os limites da entrada.
Mais tarde, a fazer o mesmo de sempre, encontra uma rapariga escondida na despensa onde deixava o carvão (fora do convento). Ela pede que a leve, que a tire dali. Ele não o pode fazer.
A cidade sabe o que se passa dentro do convento, mas ninguém se atreve a fazer nada. Empregos estão assegurados pelo silêncio, assim como a boa reputação. Até que Furlong começa a questionar-se - tal e qual como um bom cristão deve fazer.

O incómodo leva sempre à acção
Não dá para ficar na missa e esquecer-se das raparigas que esfregavam o chão e que pareciam piores que o próprio chão. Não dava para ficar a ouvir o padre e esquecer-se da moça que suplicava que a levasse com ele… Furlong sabia que não era congruente o que ouvia e o que não fazia.
O incómodo levou-o a uma acção. Aliás, ele ensina-nos que só nos incomodamos quando convicções estão bem estabelecidas, principalmente, quando adequadas a ajudar o próximo. Seja quem for.
Ainda que debaixo de ameaça, fez o que pôde. E fez mais do que uma cidade inteira.

O que Claire ensina
Uma pessoa, por mais ferida que esteja, pode escolher ser diferente da dor que a marcou. Traumas não são sentenças. Ser um ser humano decente não requer muito.
Talvez só um esforço de bom senso, e penso que seríamos mais felizes se o usássemos sem medida.
Homens e mulheres comuns, marcados com feridas que não estão à vista, podem fazer diferença. Não precisam sentir o peso do mundo e a vontade urgente de querer mudá-lo. Basta tentar fazer diferente dentro do seu contexto e realidade.
Ser comum não é empecilho. A rotina não é má. Naquilo que é comum e silencioso encontram-se as grandes oportunidades de mudança. É no hábito que se vê o que é diferente e precisa de uma acção.
Sim, acredito que acções vêm de convicções, mas de nada valem se não levadas a sério, questionadas e colocadas em práctica.
Bill Furlong é um homem simples. E a simplicidade ainda funciona.






Excelente como sempre!
Falar é uma das expressões e experiências mais incríveis que temos. Mas como falastes, precisamos cuidar com os nosso impulsos, esses podem levantar e podem destruir. Obrigada por essa reflexão.
Vou dormir com o coração aquecido com esse texto ❤️
“… nos quer levar a nível de segurança tão grande onde vamos nos sentir livres para deixar toda a dor, todos cacos, nas suas mãos“ 🤯
A forma como abraçaste este viagem e te entregaste, e a coragem que demonstraste, é algo que me deixa sempre sem palavras.
Gracias por llevarnos hasta allá! Hasta se me apretó la guata.
Como amei ler seu texto e poder relembrar os detalhes dessa viagem tão intensa e incrível que fizemos. Obrigada ❤️😇
Muito bom seu texto, e compartilho sua dor pois tive um pai semelhante, e essa questão se estar sempre em alerta até hoje vem comigo
Wow! Que corazón enorme Dios te dió.
Uma menina/mulher super corajosa para escrever sobre algo que te maguou tanto 👏👏