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Livro: Pequenas Coisas como Estas, de Claire Keegan


Como disse a Jéssica Rangel, no episódio do Entrelinhas: “Se eu fosse escritora, eu escreveria livros como a Claire”. E eu, não só apoio a sua frase para que um dia se lance os seus livros, como a uso quando penso na maestria que quero chegar.


Tornou-se uma das minhas leituras favoritas e um dos grandes temas de conversa com a Jess.


Fez-me esquecer a mistura de brutalidade e doçura de Joel Miller (The Last of Us) e focar na serenidade, constância e estabilidade que Bill Furlong transparece - o protagonista.


Talvez possa ser um devaneio meu, mas gosto de classificar escritores pela forma como olham para o homem e para a mulher.


Billy foi uma agradável surpresa. Uma calma e serenidade que é mais forte que qualquer acto heroico conquistado a espada ou arma.


Penso que convicções firmes e saudáveis é que fazem os homens serem bons homens.

fotografia de cartaz do filme "Pequenas Coisas como Estas", baseado na obra de Claire Keegan
fotografia de cartaz do filme "Pequenas Coisas como Estas", baseado na obra de Claire Keegan

Irlanda dos anos 80

Tempo e espaço? Temos!


Uma pequena vila na Irlanda, nos anos 80, em que o cenário era de famílias unidas, mas com salários precários e trabalhos que eram o que se podia arranjar.


Mas há mais detalhes: havia nessa pequena vila um convento local - onde Billy fazia o seu trabalho de entregar a encomenda de carvão (a Irlanda é fria, bem sabemos) - que recebia moças que os pais consideravam não ter um comportamento apropriado.


Nem precisava chegar a tanto. Bastava não respeitarem uma simples ordem, serem “namoradeiras” ou não terem onde cair mortas. 


Estes conventos, espalhados por todo o país, foram criados pelos Protestantes no século XVIII onde serviam para receber mulheres em situação vulnerável (prostitutas, vítimas de qualquer tipo de violência e abuso, abandono, etc.).


Funcionam também como lavandarias. O objectivo era dar um novo começo a estas meninas, moças, mulheres. Para terem o seu próprio sustento e uma vida reestruturada.


Mais tarde, passa para a Igreja Católica. Não se encontram informações que expliquem porque mudou a confissão de fé, mas mais tarde começam os casos de abuso.


Estima-se que mais de 30 mil mulheres tenham passado por estes conventos e tenham sido forçadas a trabalhos pesados, sem ver o pagamento do seu trabalho, tendo os seus filhos entregues a estranhos e, outros, mortos e enterrados nos quintais.



cena do filme "Pequenas Coisas como Estas", baseado no livro de Claire Keegan
cena do filme "Pequenas Coisas como Estas", baseado no livro de Claire Keegan

O cenário de Billy

É aqui que encontramos o nosso protagonista. Um homem de família. Fiel à sua mulher e um bom pai para as suas cinco filhas.


Um homem pacato, sereno, trabalhador e constante. Não de muitas palavras, mas de muitos pensamentos.


Profundamente marcado pela necessidade de revisitar memórias do passado que demonstram que não ultrapassou a morte da sua mãe quando era ainda um menino. Que a viu estendida no chão no momento em que esta caiu. 


Nunca conhecera o pai, fora criado pela sua mãe que trabalhava para uma bondosa senhora protestante que se recusou a mandar embora a sua empregada quando esta engravidou de Billy.


Poderia ter sido uma das mulheres desses conventos… Billy podia não ter sobrevivido ou ter recebido a boa educação que recebeu.


É pacato, sereno, mas carrega um mundo de dor aos ombros. Tem tanto para falar, palavras com tanto peso, que se recusa a fazê-lo. Prefere o silêncio, a rotina. O que tem agora (que não é muito) basta-lhe.



cena do filme "Pequenas Coisas como Estas", baseado no livro de Claire Keegan
cena do filme "Pequenas Coisas como Estas", baseado no livro de Claire Keegan

Simples encomendas

Ao fazer o seu trabalho - que se resume a conferir a medida de carvão que tem de entregar, de o colocar na carrinha e conduzi-la até onde é necessário -, dá-se conta da realidade.


Entra num espaço a mais do convento e vê algumas moças a esfregar o chão como se fossem as gatas borralheiras. Cabelos mal cortados, roupas sujas e rasgadas, caras sujas e corpos magros. É chamado à atenção de que não deve ultrapassar os limites da entrada.


Mais tarde, a fazer o mesmo de sempre, encontra uma rapariga escondida na despensa onde deixava o carvão (fora do convento). Ela pede que a leve, que a tire dali. Ele não o pode fazer.


A cidade sabe o que se passa dentro do convento, mas ninguém se atreve a fazer nada. Empregos estão assegurados pelo silêncio, assim como a boa reputação. Até que Furlong começa a questionar-se - tal e qual como um bom cristão deve fazer.


cena do filme "Pequenas Coisas como Estas", baseado no livro de Claire Keegan
cena do filme "Pequenas Coisas como Estas", baseado no livro de Claire Keegan

O incómodo leva sempre à acção

Não dá para ficar na missa e esquecer-se das raparigas que esfregavam o chão e que pareciam piores que o próprio chão. Não dava para ficar a ouvir o padre e esquecer-se da moça que suplicava que a levasse com ele… Furlong sabia que não era congruente o que ouvia e o que não fazia.


O incómodo levou-o a uma acção. Aliás, ele ensina-nos que só nos incomodamos quando convicções estão bem estabelecidas, principalmente, quando adequadas a ajudar o próximo. Seja quem for.


Ainda que debaixo de ameaça, fez o que pôde. E fez mais do que uma cidade inteira. 


cena do filme "Pequenas Coisas como Estas", baseado no livro de Claire Keegan
cena do filme "Pequenas Coisas como Estas", baseado no livro de Claire Keegan


O que Claire ensina

Uma pessoa, por mais ferida que esteja, pode escolher ser diferente da dor que a marcou. Traumas não são sentenças. Ser um ser humano decente não requer muito.


Talvez só um esforço de bom senso, e penso que seríamos mais felizes se o usássemos sem medida.


Homens e mulheres comuns, marcados com feridas que não estão à vista, podem fazer diferença. Não precisam sentir o peso do mundo e a vontade urgente de querer mudá-lo. Basta tentar fazer diferente dentro do seu contexto e realidade.


Ser comum não é empecilho. A rotina não é má. Naquilo que é comum e silencioso encontram-se as grandes oportunidades de mudança. É no hábito que se vê o que é diferente e precisa de uma acção.

Sim, acredito que acções vêm de convicções, mas de nada valem se não levadas a sério, questionadas e colocadas em práctica.


Bill Furlong é um homem simples. E a simplicidade ainda funciona.



Comentários

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Comentários (28)

Adriana
30 de set.

Excelente como sempre!

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Fabiola
05 de ago.

Falar é uma das expressões e experiências mais incríveis que temos. Mas como falastes, precisamos cuidar com os nosso impulsos, esses podem levantar e podem destruir. Obrigada por essa reflexão.

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Convidado:
22 de out. de 2024

Vou dormir com o coração aquecido com esse texto ❤️

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Convidado:
27 de ago. de 2024

“… nos quer levar a nível de segurança tão grande onde vamos nos sentir livres para deixar toda a dor, todos cacos, nas suas mãos“ 🤯

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Convidado:
27 de ago. de 2024

A forma como abraçaste este viagem e te entregaste, e a coragem que demonstraste, é algo que me deixa sempre sem palavras.

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Convidado:
26 de out. de 2023

Gracias por llevarnos hasta allá! Hasta se me apretó la guata.

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amargaridablog
amargaridablog
Administrador
14 de nov. de 2023
Respondendo a

Hehe como nosotros decimos acá: Ora essa! :)

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Convidado:
18 de out. de 2023

Como amei ler seu texto e poder relembrar os detalhes dessa viagem tão intensa e incrível que fizemos. Obrigada ❤️😇

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amargaridablog
amargaridablog
Administrador
14 de nov. de 2023
Respondendo a

Seria bom voltar, né? Pode ser que um dia tenhamos boas notícias e seja possível voltar com tudo em paz :)

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Armando Marcos
Armando Marcos
18 de jul. de 2023

Muito bom seu texto, e compartilho sua dor pois tive um pai semelhante, e essa questão se estar sempre em alerta até hoje vem comigo

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Convidado:
18 de jul. de 2023

Wow! Que corazón enorme Dios te dió.

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amargaridablog
amargaridablog
Administrador
14 de nov. de 2023
Respondendo a

Sin ninguna duda! :) gracias por leer el texto.

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Convidado:
06 de jul. de 2023

Uma menina/mulher super corajosa para escrever sobre algo que te maguou tanto 👏👏

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amargaridablog
amargaridablog
Administrador
13 de jul. de 2023
Respondendo a

Obrigada pelas palavras, que possa encorajar e fortalecer quem está no mesmo barco.

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